Então começou a pensar que na verdade rezara. Ela não. Alguma coisa mais
do que ela, de que já não tinha consciência, rezara. Mas não queria
orar, repetiu-se mais uma vez fracamente. Não queria porque sabia que
esse seria o remédio. Mas um remédio como a morfina que adormece
qualquer espécie de dor. Como a morfina de que se precisa cada vez mais
de maiores doses para senti-la. Não, ainda não estava tão esgotada que
desejasse covardemente rezar em vez de descobrir a dor, de sofrê-la, de
possuí-la integralmente para conhecer todos os seus mistérios. E mesmo
se rezasse... Terminaria num convento, porque para sua fome quase toda a
morfina seria pouca. E isto seria a degradação final, o vício. No
entanto, por um caminho natural, se não buscasse um Deus exterior
terminaria por endeusar-se, por explorar sua própria dor, amando seu
passado, buscando refúgio e calor em seus próprios pensamentos, então já
nascidos com uma vontade de obra de arte e depois servindo de alimento
velho nos períodos estéreis. Havia o perigo de se estabelecer no
sofrimento e organizar-se dentro dele, o que seria um vício também e um
calmante.
O que fazer então? O que fazer para interromper aquele caminho, conceder-se um intervalo entre ela e ela mesma, para mais tarde poder reencontrar-se sem perigo, nova e pura?...O que fazer?
O piano foi atacado deliberadamente em escalas fortes e uniformes. Exercícios, pensou. Exercícios... Sim, descobriu divertida... Por que não? Por que não tentar amar?
Por que não tentar viver?
O que fazer então? O que fazer para interromper aquele caminho, conceder-se um intervalo entre ela e ela mesma, para mais tarde poder reencontrar-se sem perigo, nova e pura?...O que fazer?
O piano foi atacado deliberadamente em escalas fortes e uniformes. Exercícios, pensou. Exercícios... Sim, descobriu divertida... Por que não? Por que não tentar amar?
Por que não tentar viver?
Clarice Lispector
Perto do Coração Selvagem
Pagina 79
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